EU, O OUTRO
[Por ANTONIO MIRANDA, em 1993]
E havia aquela voz dentro de mim, contradizendo-me. Onipresente. Não sei se era o Anjo da Guarda ou o Coletivo Social, o outro Eu feito à minha dessemelhança e contragosto, desgostando e desgastando o meu entusiasmo. Houve momentos em que fingi-me surdo e mudo, fugindo ao diálogo que eu sabia de antemão perdido. Era uma cobrança constante, um juízo inflexível. Mas eu movia o corpo, assumia a minha ossatura e fazia mover a minha tessitura frágil e obstinada para vencer temores e pudores. Creio que era a voz do dono, a voz do Outro, soprado em minha alma desde o amanhecer de minha existência. Uma difícil convivência. Na adolescência transformou-se em um tribunal constante. Não obstante, resistia. Fugia, gastava energia e vontade. Estava possuído, consumido. Era uma voz plural, convencional. Eu não, eu era o anti, o contra, o insubmisso. Isso e o outro. Porque estava em mim, eu sabia se devia, se podia, mas escapava, saltava, descia a uma realidade avessa, torta, tortuosa. Os livros da infância me cegaram, as lições do colégio me crucificaram. Eram lições de fora, eram porções de feira, eram textos e preconceitos. Preceitos. Creio que havia um exemplo a seguir, um ritual a cumprir, um caminho a percorrer. Havia o caminho do Bem e o tortuoso caminho do Mal, que era o melhor de todos. Disseram-me que morder a hóstia enchia a boca de sangue; que blasfemar contra Deus era condenar-me ao inferno da vida e da outra vida. E eu só queria esta vida, que me era negada ou manipulada, em nome da outra. Havia o recurso do espelho, para dialogar comigo mesmo. Quando não nos entendíamos eu quebrava a imagem, para superá-la. E falava sozinho, para o meu abandono, nas noites sem sono, almejando espaços impossíveis. O mundo é cada vez menor! O espaço diminui geometricamente enquanto a humanidade cresce aritmeticamente. Não há espaço para todos. Há regras, há limites. Só é possível crescer para dentro, desalojando este Outro que nos sufoca. Suicidei-me pela metade para ocupar o meu espaço inteiro e estou condenado à solidão de mim mesmo. É hora de reinventar o espelho, para não cair na submissão aos Livros e aos sábios que já têm verdades prontas para o consumo. Valha-me Deus, que sou ateu!
Link para visitar o pdf do livro inteiro de onde extraímos o texto acima: http://www.antoniomiranda.com.br/obras_publicadas/obrascomentarios/relogio.pdf
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